A Cana-de-Açúcar e a Ilha da Madeira
A origem Da Cana-de-açúcar
A cana sacarina enquanto cultivo surge algures na Papua Nova Guiné há cerca de sensivelmente 12000 anos.
Desde essa altura esta cultura espalhou-se até à Índia onde se verificaram as primeiras técnicas de transformação do sumo da cana-de açúcar em cristais de açúcar (entre os séculos I a IV DC). Foi a partir desta área na Ásia que o cultivo da cana sacarina foi levado para a área geral do Mediterrâneo pela mão dos árabes. Estes trouxeram-na para a Península Ibérica, Marrocos, Egipto e Sicília, juntamente com o conhecimento das técnicas de processamento desta matéria prima (a própria palavra açúcar tem origem na palavra árabe as-sukkar).
O Açúcar na Madeira
O arquipélago da Madeira é oficialmente descoberto a 1419, embora esteja bem documentado muito antes disso (veja-se a presença da ilha no Portulano de Dulcert em 1339 e a referência às Ilhas Afortunadas ou às Ilhas Purpura já no período Romano).
O cultivo da cana-de-açúcar estava já estabelecido, por virtude da expansão islâmica nas suas variadas fases, na Península Ibérica e outras regiões do Mediterrâneo, como a ilha da Sicília.
Com os esforços da expansão portuguesa vemos uma passagem do cultivo da cana sacarina do espaço do Mar Mediterrâneo para o espaço Atlântico, centrado na Ilha da Madeira.
O cultivo da Cana-de-açúcar surge na Madeira por vontade, ao que tudo indica, do Infante Dom Henrique. O primeiro Duque de Viseu revelou-se uma figura de influência importante nas ações de expansão portuguesa além-mar. É ele que manda vir da Ilha da Sicília as primeiras socas de cana-de-açúcar (alguns historiadores, ainda assim, discutem se as primeiras culturas de cana sacarina não terão vindo antes de Valência ou até mesmo do Algarve, porém a tese siciliana aparente ser a mais aceite).
A primeira plantação no Funchal acontece num campo pertencente ao Infante, o Campo do Duque, em 1425.
A ilha tem boas condições para a produção de cana e do produto desta, o açúcar: é abundante em água e tem bastante madeira proveniente da floresta que poderá facilmente alimentar os engenhos.
A instituição do cultivo da cana sacarina com o intuito de produzir açúcar, especiaria (ou à altura, no século XV, considerada como tal) muito cobiçada já nas cortes europeias do tempo e de valor particularmente elevado, contribuiu para o flagelo que é fenómeno da escravatura. No imediato foram “importados” escravos guanches vindos das vizinhas Canárias (os guanches são nativos das ilhas Canárias etnicamente relacionados com os povos bérberes norte-africanos) e posteriormente escravos negros vindos da Costa da Guiné. Aparentemente é na Madeira que, no contexto da produção do açúcar, foi aplicada mão-de-obra escrava negra pela primeira vez. O sistema colonial de produção de açúcar é posto em prática na Ilha da Madeira, numa escala muito menor, e será sucessivamente aplicado, em larga escala, noutras zonas de produção ultramarinas, como é o exemplo maior do Brasil.
Após a primeira plantação de cana no Funchal, os canaviais são levados para a zona de Machico, onde se produzem as primeiras arrobas de açúcar. A distribuição dos canaviais é feita na sua maioria pela costa sul da Ilha da Madeira, na Capitania do Funchal, especialmente nas zonas da Ribeira Brava, Ponta do Sol (uma das maiores propriedades de canaviais era a Lombada dos Esmeraldos, pertencente a João Esmeraldo, fidalgo de origem flamenga) e Calheta.
A construção dos primeiros engenhos vê a produção de açúcar explodir. Em 1500 a Madeira era o maior exportador de açúcar do mundo. O seu açúcar era considerado de qualidade superior e muito apreciado na Corte portuguesa, em Inglaterra e na Flandres. A produção madeirense fazia forte concorrência ao açúcar vindo do Mediterrâneo (Sicília, Marrocos e Egipto).
A ilha vê um influxo de comerciantes vindos de todo o mundo conhecido (flamengos, italianos, ingleses, etc.).
Os comerciantes da Flandres, em particular, trocavam o açúcar por obras de arte flamenga como a pintura do altar e o tecto de madeira decorado da Sé Catedral do Funchal e muitas das obras de arte que se encontram no Museu de Arte Sacra.
A popularidade do açúcar produzido na Madeira era tanta que o mesmo era incluído nas esmolas dadas a mosteiros, hospitais e misericórdias no domínio português da altura, tanto na Península Ibérica como no Norte de África.
As técnicas de produção do açúcar usadas na Madeira eram ao início semelhantes às usadas no território de influência do Mediterrâneo, ou seja, os engenhos usavam força animal (bois). Posteriormente aproveitou-se um dos bens da ilha, a água. Usa-se então o engenho de água e o trapiche (geralmente uma moenda de cilindros usados para moer canas, de eixos horizontais ou verticais, movidos por animais ou até por homens).
O processo de produção de açúcar, de uma maneira muito básica, faz-se da seguinte forma:
• As canas são colhidas e moídas dentro das primeiras 48h (isto tem que ver com o nível de sacarose que se vai perdendo quanto mais tempo passar desde o momento da colheita).
• Na moenda extrai-se o sumo e o bagaço.
• O sumo da cana é cozido em caldeiras, filtrado de impurezas e concentrado em tachos até atingir a consistência de mel. O mel é batido até o ponto de cristalização do açúcar.
• O açúcar era então quebrado e cozido novamente com o intuito de refinar, sendo colocado em formas cónicas conhecidas como pão de açúcar (veja a imagem em baixo).
• Por fim o açúcar era purgado do mel que poderia restar através da lavagem.
Eventualmente, após este primeiro “boom” sentido no século XV e início do século XVI, surge o declínio da produção de açúcar na ilha. Esta crise acontece na segunda metade do século XVI e tem várias causas. A cana sacarina na ilha começa a evidenciar doença e, ao mesmo tempo, há também uma forte concorrência de novos territórios produtores: Canárias, São Tomé e, principalmente, o Brasil. A produção açucareira decai de tal modo que não chega para as necessidades domésticas, chegando a ser importado para a ilha açúcar proveniente de São Tomé e do Brasil. Os engenhos de açúcar (outrora em grande número, embora ninguém consiga precisar) são gradualmente abandonados, sobrando poucos.
Perante este contexto esta cultura perde importância para outra muito marcante para a ilha: o vinho.
Mas é através do declínio da produção e comercialização do vinho que a cana de açúcar faz o seu “comeback”. Isto acontece com o advento do século XIX.
Os engenhos de água e outros a vapor renascem. É produzido açúcar, nomeadamente pela famosa fábrica Hinton& C.a (até ao seu fecho em 1985) e outros quantos. Mas é também produzida a tão famosa aguardente de cana (elemento mais importante da poncha) e, eventualmente, outra herança gastronómica madeirense: o mel de cana.
Este pequeno renascer da cana sacarina dura até o início do século XX até às restrições levantadas progressivamente à produção de aguardente pelos engenhos (que foram limitados não só na produção da mesma como na sua própria existência enquanto fábricas). Isto aconteceu porque estava a ficar evidente um problema de saúde pública provocado pelo excesso de consumo desta bebida altamente alcoólica.
É desta maneira que vemos um novo crepúsculo da cana-de-açúcar na Madeira. Há um novo abandono deste cultivo, que vai sendo substituído pela bananeira no sul da ilha. No Norte, visto que não há uma mesma cultura de substituição dá-se o abandono das terras agrícolas e consequente vagas de emigração por parte da população mais jovem.
Os engenhos que nos restam hoje em dia são herdeiros desta longa história que começa quase simultaneamente com o povoamento da ilha. Entre os quais contam-se o Engenho Novo da Madeira, Sociedade dos Engenhos da Calheta, Engenhos do Norte e a Fábrica Mel-de-Cana Ribeiro Sêco de V. Melim (uma das mais antigas). Estes dedicam-se na sua maioria à produção do Rum/Aguardente e o mel de cana sacarina, os dois tão presentes nos nossos rituais gastronómicos e culturais.
Não se consegue equacionar a História da Madeira sem ter presente a importância fundamental da cultura do açúcar na mesma. Foi o açúcar que permitiu o povoamento eficaz da ilha e foi o açúcar que determinou a grande influência da mesma nos territórios ultramarinos do jovem império português.
A Ilha da Madeira e o Açúcar estarão para sempre interligados.